sexta-feira, 4 de novembro de 2011

De lugar algum


Nos dois primeiros meses Lucas entrava sempre no último vagão. Seguia a lógica de que se caso houvesse uma colisão ou descarrilamento, as chances de sobreviver estando nos primeiros vagões seriam mínimas. Dois anos depois Lucas já havia mapeado todos os vagões, provado todos os assentos em diversas condições climáticas e percebeu alguns padrões. Todos os dias ele se posicionava no ponto exato em que deveria ficar para que quando o trem estacionasse, a porta abrisse exatamente na sua frente e ele pudesse entrar e assentar-se no banco que ficava ao final do primeiro vagão, encostado na divisória do mesmo. Ele sentava já com os fones nos ouvidos e tirava um livro da maleta preta. Lia algumas páginas e quando a visão embaralhava ele fechava o livro, encostava-se na divisória e dormia. Com o passar do tempo a necessidade de conforto sobrepõe qualquer estatística negativa.

Naquele final de dia abafado de final de primavera, havia duas mulheres na plataforma paradas no lugar onde Lucas aguardava o trem chegar. Ele odiava quando isso acontecia, pois as pessoas não davam o devido valor ao local. Quando aporta abria na frente deles eles achavam que era um golpe de sorte, mas Lucas sabia que não era, pois aquele lugar fazia parte de um padrão e era por direito dele por tê-lo descoberto. Lucas ficou atrás das mulheres, pois ele tinha um plano B. Se elas sentassem no seu lugar haveria ainda o lugar da frente que tinha quase as mesmas condições que o seu preferido. O trem chegou a porta abriu, as mulheres entraram lado a lado, elas foram para um lado e para o outro indecisas. A massa humana atrás deles adentrou e Lucas viu o plano A e B irem por água abaixo. Acabou sentado espremido entre uma senhora gorda e um segurança. Abriu a maleta para pegar o livro, não estava lá. Lembrou que havia deixado em cima de sua mesa, ao lado dos fones no seu trabalho. Desfaleceu. Na estação seguinte o trem lotou.

Lucas sentia-se exposto. Estava sendo bombardeado por coisas que sempre estiveram à sua volta e nunca havia percebido. Via as pessoas espremidas tropeçando umas nas outras, ouvia sobre o crime hediondo da noite anterior, sobre quem teria sido o assassino da novela, sobre a modelo grávida, sobre o técnico da seleção, como seria bom se aquele dia fosse sexta-feira, o último filme de heróis, a briga com o chefe, com o colega, com os pais, sobre as gostosas que ficam na porta do trem, mas não conseguem entrar. Via as faces sérias, arrogantes, nulas e sorridentes, gargalhadas em demasia, suor em demasia, oxigênio escasso. Crianças chorando crianças gritando. Quer um chiclé ? Pode me dar licença?  Que estação é essa? Será que vai chover?

Lucas amaldiçoava o momento de distração em que esqueceu o livro e os fones. O suor fugia de suas têmporas bochecha abaixo. Os pés dilatavam seu sapato. Escorou a cabeça para trás com os olhos fechados, concentrou todas as suas forças para chutar sua mente para longe daquele torpor, e conseguiu. Sua mente voou alto por sobre as nuvens e ele pousou como espectador de uma orquestra sinfônica em uma passagem de som que lembrava um Richard Wagner em um dia de fúria. Os violinos gritavam dramáticos e eram respondidos pelos arpejos furiosos dos cellos. Lucas sentia-se tocado por cada nota executada. Envergonhou-se por estar chorando, foi ai que começou a chover. Os músicos fecharam suas partituras e foram embora protegendo seus instrumentos, ele olhou para os lados e viu a platéia embarcando em trens que estacionavam em ambos os lados do auditório, ele não compreendia nada do que acontecia desejou estar em casa, então ergueu as mãos e agarrou a primeira mão que passou acima de sua cabeça. Foi puxado para a bordo do cesto de um dos balões que alçavam vôo do meio das cadeiras. O mundo estava ruindo, mudando a cada segundo. Era demais para sua concepção metódica e organizada de ver a vida.

- Abandonar navio! – gritou um dos homens que estavam dentro do cesto quando o balão bateu no teto e começou a murchar. Lucas pulou. Deu por si em uma vertiginosa queda livre, em meio a diversas nuvens brancas e gordas como se gigantescas ovelhas de algodão estivessem pastando o azul do céu. Ele fechou os olhos e entregou-se a mistura de paz e vertigem em meio ao branco. Ele ouvia ao fundo os violinos ressonando novamente e logo não havia mais vertigem e tudo era somente paz.

Lucas foi abrindo os olhos lentamente, alguns cílios estavam grudados. Dormira tanto a ponto de criar remelas? Estava com as pernas esticadas e com uma parte das costas ainda no escoro do banco do trem. Esfregou a cara com as mãos e demorou a compreender que o vagão estava vazio e parado.
- Dormi e fui para no fim da linha - ele pensou. O único barulho que ouvia lhe era bem familiar, mas ele não conseguia distinguir. A luminosidade era natural e vinha da rua como uma manhã prestes a acordar. Estralou o pescoço espreguiçando-se e esticando os braços. Postou-se em pé e não conseguiu distinguir o que havia do lado de fora. Juntou sua maleta e dirigiu-se à porta semi aberta. Ele estava prestes a descobrir o cheiro daquela brisa fresca que lambeu seu rosto quando a luminosidade ofuscou seus olhos ainda sonolentos. Lucas passou pela porta e seus pés não encontraram o chão, caiu de joelhos e cotovelos no chão branco e fofo.
Era areia fina e branca. Ainda de joelhos seus olhos viam apenas areia à sua frente. Dunas e dunas preenchiam o horizonte.

Lucas limpou-se como pode, caminhou até o primeiro vagão e olhava nas janelas e portas entreabertas. Não havia ninguém, nem mesmo na cabine do operador. Foi até a frente do primeiro vagão e viu os trilhos sendo encobertos por uma pequena duna. Fim da linha. Então ele passou para o outro lado dos trilhos e sua boca abriu-se lentamente. Descobriu a brisa e o cheiro. Ele estava à beira mar sob um céu cinzento sem ovelhas gigantes de algodão. Apenas um tapete cinza encontrando o mar lá no horizonte. Estaria ainda dormindo? Mais um sonho maluco de final de tarde? Ele caminhou pela praia deserta em direção ao mar que vinha sem pressa em pequenas ondas que deixavam a areia com cara de pedra maciça quando as águas recuavam. Ele avançou até que seus pés foram encobertos, a água era gelada como um piso de banheiro em uma manhã de inverno com os pés descalços. Sua maleta foi ao chão. Ele continuou caminhando lentamente. Não seria ainda um sonho. Não se pode sentir odores, você não tem noção de temperatura em sonhos ou pode? O gelo dos pés subiu pelas canelas. Sua maleta passou boiando por ele. – Não é um sonho. – ele repetia para si. 

Beliscou-se e sentiu dor. Ainda assim não havia explicação. A água gelada alcançou-lhe os joelhos. Ele parou. O frio tornou-se reconfortante. Lembrou-se que não via o mar há anos. – Isso deveria ser proibido - ele sussurrou com lábios sem voz - tanto tempo sem ver o mar.

Soou um apito, as portas do trem se fecharam, as engrenagens berraram e o trem voltou a arrastar-se pelos trilhos. Deveria ter alguém na ultima cabine, o operador certamente. O trem não iria andar por ai sozinho, iria? A água alcançou-lhe as coxas. Ele recuou. Lucas ainda estava digerindo aquela situação surreal em que se encontrava. A maleta sumira em meio às ondas, assim como o barulho e a visão do trem. Ele começou a caminhar pela praia ainda com água nas canelas. Sentia que a cada minuto naquele gelo a sua vida mudava. Ou simplesmente aquele não era apenas mais um dia em sua vida e sim um “divisor de águas”. Riu com a ironia de seu pensamento. Colocou a mão nos bolsos e encarou os trilhos mais uma vez. Se quisesse voltar para casa era só segui-los de volta. Mas voltar para casa era algo que ele não queria pensar. Pelo menos não naquele momento.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

DDA


Então ela disse que as piadas e as minhas “grandes sacadas” eram tão sem graça e ridículas quanto as tiras que eu compartilhava. Na frente de todos ela perguntou se eu não me envergonhava de ser tão debochado e usuário de um sarcasmo tão antiquado quanto perturbador.

Eu botei o dedo na cara dela e inflei o peito com todo o ar da sala, eu não era conhecido apenas por ser um piadista, mas também por retóricas matadoras. Acontece que eu tinha parado de prestar atenção nela quando ela falou “grandes sacadas”. 
Não me lembro quem me disse isso, mas ouvi dizer que tem alguns execícios que ajudam a melhorar o déficit de atenção. Só que toda vez que tento procurar me informar sobre isso na internet eu acabo minhas horas vendo videos de gatos engraçados

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Contos e trilhas

O conto do post anterior dá início a uma série de contos que plubicarei aqui, que são de alguma maneira atrelados a uma trilha sonora. Não tem muito padrão nisso, pode ser apenas alguma sensação que tive ao escuta-las (a grande maioria foi assim) ou simplesmente a melodia que me remeteu à idéia do conto. E eu posso explicar essa relação aqui ou não. Acho que sem um padrão fica mais divertido.

Bem, o conto "No salão do rei da montanha", nasceu de uma música de mesmo nome. A idéia original era bem mais extensa e com mais personagens. Os cellos nervosos do Apocalyptica deram uma roupa nova para In the hall of the mountain King de Edvard Grieg.

No salão do Rei da montanha

A chama de sua tocha desenhava grotescas criaturas de sombra nas paredes à medida que Lucius avançava cambaleando pelo estreito corredor, com seus pulmões suplicando por um ar menos denso e pútrido. A bússola e o que sobrou de sua equipe ficaram para trás e nada o faria voltar. Sentia o desespero a abocanhar-lhe os calcanhares. Então as paredes e o teto se distanciaram e ele sentiu que adentrara em algo semelhante a uma câmara e não mais estava na galeria intrincada de corredores. O ar tornou-se insuportável, suas vísceras se retorceram. A chama minguou, denotando a escassez de oxigênio. A câmara era de uma estrutura e acabamento diferente dos corredores. Era em formato de ponta de lança, e suas paredes, embora enegrecidas pelo mofo e poeira, davam a entender que algum dia já haviam conservado alguma beleza. Na parte mais íngreme e pontiaguda, havia algo que era impossível passar despercebido para qualquer um que adentrasse o pórtico de entrada. Era algo semelhante a um assento gigantesco, ornamentado com uma estrutura bizarra e assustadora, como se o esqueleto de algum monstro escabroso estivesse montado logo à sua frente. Seria aquele “O Trono”? Lucius estava preso aos detalhes e não percebeu que havia algo sentado ali observando-o. Alguns passos a mais e ele contemplou a criatura que já se erguia lentamente. Ele sentiu o sangue descer congelando nuca abaixo. O que se movia em sua direção tinha a altura, os membros inferiores e superiores e o caminhar que lembravam um humano. Mas o pouco que se revelava de sua face estava distante de qualquer humanidade. Lucius quis correr, mas seus joelhos travaram e sentiu como se seus pés tivessem criado raízes prendendo-o ao chão. Quanto mais “aquilo” se aproximava, mais a luz enfraquecia, e o pânico assumia o controle do seu corpo. Ele sentiu o sussurro peçonhento de seu anfitrião penetrar em seus tímpanos como facas afiadas:

- Herdeiro. Sucessão.

Lucius sentiu o sangue fugir-lhe das faces, ele percebeu que, de alguma maneira a luz fugia do ser que se aproximava. Estavam a dois passos um do outro, quando em uma atitude desesperada e insana, ele atirou a tocha na cara da criatura. Ele viu no lampejo da tocha a face enegrecida e putrefata com um arremedo de sorriso demoníaco. Lucius sentiu seus intestinos esvaziarem. Ele queria juntar a tocha do chão e correr, mas o desespero o petrificou. A esperança de que tudo fosse um pesadelo e que logo acordaria se esvaiu quando a mão esquálida e gélida tocou seu pescoço e a chama da tocha cedeu às trevas, que consumiram também sua consciência.

domingo, 24 de abril de 2011

O Último Hendrix

Havia um gosto de despedida naquele conhaque que descia a seco goela abaixo. Escrevia com dificuldade um amontoado de palavras em uma folha sobre a mesa. Ao seu lado aguardavam um revolver com o tambor aberto e uma única bala. Aos seus pés estava Jimi que recebera esse nome por causa do Hendrix. O cão perseguia com os dentes uma pulga que corria pela sua barriga.

Era o fim, e já não havia mais o que escrever. Encarou o revolver e o projétil. Sugestivos. Sabia que tinha apostado alto demais em um jogo perdido, lhe restava soltar as cartas na mesa. Hesitou. Levantou-se e escolheu um vinil a dedo. Escutaria aquelas músicas com o mesmo apreço que um condenado à morte dá ao seu último cigarro. Olhou para Jimi e disse:

- Esse é nosso último Hendrix.

Olhou seu rosto no do banheiro, fragmentado em mil estilhaços. Sua mão não sangrava, mesmo assim enrolou-a com um trapo. Voltou da despensa com uma espécie de gaiola, olhou para o cão tirando suas medidas a olho e atou a gaiola na sua velha moto. Colocou suas poucas roupas em uma mochila. Jogou fora a folha sobre a mesa e com facilidade começou a dar sentido as palavras. Ele derramou sentimentos sobre a folha. Encarou mais uma vez a arma e o projétil. Ainda sugestivos.

Encontrou Jimi na porta com a coleira na boca espanando o chão com o rabo.

- Esse não é um de nossos passeios matinais amigo – disse ele – Mais uma vez fomos golpeados pelo destino e estamos por terra. Só que dessa vez, vou bater a poeira e vou cuspir na cara do destino. Nem que seja sangue, nem que seja a própria vida. Seguirei pelo caminho daqueles que desistiram de se iludir, vou viver flertando com o acaso. Mas estarei por minha conta, parece perigoso, mas pode ser divertido, e você não é obrigado a ir.

O vira lata batia seu rabo ansioso como se em algum código canino afirmasse que seria muito divertido. O homem sorriu, pois percebera que nunca estivera sozinho. O cão seguiu- o quando ele deixou bater a porta atras de si.

O vento da porta fechando fez a folha voar para o mofo debaixo do armário deixando o revolver e o projétil solitário sobre a mesa. Nas caixas de som, ainda se ouvia a guitarra estridente do último Hendrix.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Cálculos

Caio contou no tambor, três projéteis.
Sete homens o cercavam.
Suspirou.
Em toda a sua vida a matemática nunca esteve a seu favor.