domingo, 5 de dezembro de 2010

Filtro amarelo

Sempre tive problemas com garçons. Quando possível eu fazia o pedido antes de sentar à mesa. Nada contra eles, mas é que sou um tipo discreto e eles geralmente não me enxergam com a mão erguida suplicando ser atendido. Só que desta vez eu tentava chamar a atenção do garçom de uma forma quase apavorada abanando com as duas mãos. Julia precisava de algo forte para beber. Estávamos há quase um minuto em silêncio. Desconfortáveis. Então ela me encarou com aqueles olhos de mulher durona que renega as lágrimas, pelo menos até o momento de estar a sós. Tinha os olhos vítreos, com aquele brilho quente prestes a transbordar as pálpebras. Ainda me encarando ela levantou a mão esquerda e estalou os dedos, como mágica apareceu um garçom ao seu lado.
– Dois conhaques sem gelo – Eu pedi.
– Eu só quero um maço de Silk Cut - ela falou em um tom suave sem tirar os olhos embaçados de mim. Logo eu entornava o conhaque e ela soltava fumaça pelas ventas sentindo prazer no leve declínio da pressão sanguínea.
- Quem diria que acabaríamos com conhaque e cigarro baratos? – Julia baforou enquanto uma de suas pálpebras tremia. Tomei mais um gole e estalei os lábios.
– A vida é dura não é? – Eu tinha muito para dizer, mas quando a verdade não faz o menor sentido e os sentimentos são insuficientes para mudar uma situação, é uma boa hora para polir o orgulho. Aquilo foi tudo o que eu pude dizer.
- É dura para alguns e infinitamente amarga para outros. – era um misto de maldição e despedida, ela saiu e deixou meio cigarro boiando no meu copo. Paguei a conta, peguei o maço de cigarros e abandonei o bar tão rápido quanto Julia saiu de cena. Esse era eu fazendo o que sei fazer melhor, afastar-me das pessoas que se dispõem a conviver comigo. Ao quebrar a esquina, encontrei-me com um mendigo empurrando um carrinho de supermercado cheio de papelão, estava imundo e tinha os pés descalços e grossos como cascos. Pediu-me um trocado. Atirei-lhe o maço de cigarros. Eu já estava distante quando ele gritou:
- Valeu irmão. Mas eu não fumo filtro amarelo. – e me jogou o maço de volta .
Eram tempos difíceis aqueles. Merdas aconteciam por todos os lados. Se você não fosse durão, tinha que fingir ser um. Mesmo assim a única coisa que me perturbava era aquele vento quente de final de primavera prenunciando mais um verão infernal. Desejei com todas as forças me teleportar para o Alaska ou para as florestas geladas do Canadá. O máximo que consegui foi voltar ao bar e comprar um isqueiro.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Beethoven

Caminhou até a cozinha, sua respiração embaçava as grossas lentes presas na fina armação de alumínio. Sentia um frio correndo espinha abaixo, abriu a geladeira e nada viu além de garrafas de água. Logo abriu o congelador e apenas vodka havia. Brotou um malicioso sorriso no canto da boca extinguindo a culpa e o medo, pois agora sabia que o único sangue frio naquela noite seria o sangue de Ana recém derramado na sala . Ela que agora mirava o teto com seu olhar petrificado, com a oitava sinfonia de Beethoven ao fundo, coagulando sangue na noite fria sem luar.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O Cimério

- Você já leu algum livro dos “vampiros”?
- Não. Eu estou lendo Conan.
- Tá, mas certo que tu já viu pelo menos um filme da trilogia?
- Não. Eu estou revendo a trilogia do Conan.
Ela saiu sorrindo sem graça e eu fiquei lá o resto da noite empunhando meu copo.
Soberano de minhas convicções, destemido e solitário como Conan.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

From Heaven to Hell.

E lá estava eu achando tudo muito estranho. Mesmo depois de tudo, morrer e estar indo para o céu era o cúmulo do inesperado. Me dei conta de que era apenas um sonho quando ao passar pela porta do céu, Mike Patton aparece do nada trajando um terno vermelho sangue com um cravo branco na lapela, coloca o pé na porta e diz:

- Ninguém passa por aqui sem tocar um blues.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Um setembro qualquer

Ela me ligou dizendo que eu poderia escolher o que eu quisesse como presente de aniversário. Eu pedi um dinossauro. Com uma voz rouca e quase sensual ela disse que não era esse o espírito da coisa. Muitos aniversários depois eu ainda lembro daquela ligação. Se eu tivesse ganho aquele dinossauro provavelmente hoje eu não teria problemas com os cães da minha rua, eu teria uma condução para ir ao trabalho, ninguém mais roubaria minhas roupas do varal, talvez até me ajudasse a ter algum sucesso com as garotas. Ela ofereceu sexo, eu quis um dinossauro, acabei ganhando uma barra de chocolate meio amargo. Nem sempre se tem tudo o que se quer. Foi isso o que aprendi com aniversários.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Clube dos Perdedores

"...talvez até algo que trouxesse alguma mudança substancial no curso da humanidade. Afinal eu tinha o poder de congelar mil infernos, poderia ter feito algo realmente grande. Mas não. Eu fui jogar taco. Ah diabos quem se importa com a humanidade quando se pode dar boas tacadas?

sábado, 17 de julho de 2010

Clube dos Perdedores

Maria Clea. Perdi metade da minha coleção de figurinhas do Ping-Pong Pantanal para ela na 3ª série. O pior foi ter dito que eu perdi de propósito porque gostava dela. Desde então eu venho tentando lavar minha honra no jogo e com as mulheres. Ontem à noite eu perdi a Fernanda em um jogo de canastra. Tentei ligar para avisa-la a noite toda, mas só dá na caixa postal.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Meu amigo Frankenstein

Não há vento. Nada faz as árvores acordarem, nem mesmo o orvalho fazendo cócegas ao rolar sob suas folhas em gotas. O céu está limpo e a lua se mostra no ápice de sua luminosidade. De incômodo só esses meus dedos de juntas debilitadas e castigadas pelo frio que ao cair da noite empurra as pessoas para debaixo de suas cobertas e as privam de desfrutar desse espetáculo que é o luar. O encantamento da lua é só para os inquietos notívagos. Então vamos meu amigo, não me olhe com essa cara desolada. Anime-se. Não se preocupe com a falta de amor ou com o excesso de solidão. Ora, beba mais um gole, e esqueça o dia. Saúde a noite. Não me diga que não és digno desse momento. Não, não suspire, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Há algo de ruim em todos nós, sempre há o que faz nos envergonharmos de nós mesmos de um modo ou de outro. Todos nós sabemos onde vivem os monstros. Os seus estão do lado de fora. Os meus levo aqui dentro comigo. Mesmo assim buscamos viver a ilusão da felicidade. De certa forma, aberrações à parte, somos iguais. Nesse ideal utópico, esquecemos do que há a nossa volta. Por isso insisto meu velho, beba mais um gole pra aquecer e veja o quanto perdem aqueles que repousam agora para buscar a felicidade amanhã. Eu posso desconhecer teus anseios, e você pode desconsiderar tudo o que eu disse. Mas por favor, não despreze o que há em sua volta. É muito mais do que qualquer um de nós possa merecer. Dentro, todo coração queima. Então, enquanto eu me espremo em meu casaco e aperto meus dedos no fundo dos bolsos, ao menos balance a cabeça e me conte outra história. Finja que me compreende. E eu finjo que todas essas divagações são verdade. Afinal, um pouco de compreensão, calor e fantasia, não são o bastante para fazer um homem sentir-se feliz por uma noite?

terça-feira, 27 de abril de 2010

Cinzento

Estava ali, parada e por entre as sombras ela me olhava. Eu a olhava também, mas via somente um vulto, esperando que fosse alguém. Você sempre pensa que é o rosto de alguém conhecido que dá a forma de um vulto na rua. Não pensa? Da mesma forma que você quer reconhecer todos os pedestres na rua quando se está sentado na janela de um ônibus. E eu fiquei ali tentando encontrar todos os rostos que se encaixavam naquele contorno escuro. Eu estava sendo observado também, mas eu estava visível. Era covardia. E ela fitava a mim tanto quanto eu a ela, mas o que tanto olhava se eu estava à luz? Talvez estivesse esperando um aceno, ou então um daqueles sorrisos que querem dizer a mesma coisa. Ou talvez não estivesse esperando porra nenhuma. Foi o que pensei, virando para o lado. Mas ela ainda estava lá. Eu a sentia olhando. Imóvel. Observando. E no fundo eu sabia que devia ter acenado. Mas eu fiquei cantarolando em palavras mudas uma música que nunca cantei. Afinal, quem acena para vultos ou impressões. Perdi muito naquele dia. Assim como eu sempre penso que perco toda a vez que isso acontece, sempre que eu tento encaixar rostos conhecidos em sombras aleatórias. Como um cego tentando reconhecer a face de uma moeda. Nunca isso foi tão incômodo como naquele dia em que desejei o terrível sol de um dia de verão sobre as sombras daquele entardecer de outono.
E eu sempre coloco a culpa disso tudo na minha falta de visão. Mas naquele dia eu estava de óculos.